quinta-feira, 24 de novembro de 2016

SONHOS APRISIONADOS

Todos os dias ela acordava e queria morrer.
Depois do almoço, só desaparecer.
E à noite, matá-lo.

Havia parido seus filhos, dedicado suas dias e noites aos sonhos daquele cara que havia lhe salvado das garras do pai pedófilo. Largou seus sonhos nas horas de cada dia que viveu na pobreza de carinho, de respeito e de sonhos. Os sonhos eram dele. Dela era o pó das malhas que costurava, os panos sujos da limpeza da casa, o calor na barriga quente pelo ferro e fogão.
Depois de muitos anos esqueceu quem era, quem havia sido, o que poderia vir a ser.
Ele, seu salvador, fecundador e homem fez faculdade, frequentou bares e jantares com colegas, ia em casas de prostituição. Ela, forno e fogão.
Quando ele foi embora para morar com outra, atirou-se no chão, arrancou cabelos, chorou noites e dias, perdeu peso, quase morreu. Mas não admitia viver sem ele, sem sua presença, sem os sonhos terceirizados. Esperaria por ele até o fim da vida, quando cansasse das aventuras da liberdade e precisasse dela para cuidar de suas doenças. Ele voava enquanto ela estava presa nos grilhões de sua casa. Aquela prisão era só dela e as chaves da cela guardadas na gaveta dos talheres.

Todos os dias ela acorda e espera por ele.
Depois do almoço, olha pela janela à sua procura.
E à noite, caso ele queira, amá-lo.


terça-feira, 20 de setembro de 2016

LADRÃO DE DOMINGOS

Não sabia há quanto tempo não vivia seus domingos. Sempre soube que seria dia de almoço especial, de caminhadas pra ver as nuvens, o céu, as flores florescidas ou em véspera de aparecerem. 

Mas sempre desapareciam com seus domingos. 

Antes porque tinha que brincar sozinha, longe de vizinhança inapropriada para a convivência. Pouco mais tarde, porque era dia de conviver com seus parentes nada inocentes, que lhe torturavam no bosque aos fundos da casa da avó. Um tempo depois, os domingos eram roubados pelas obrigações, afazeres domésticos de quem havia assumido compromisso cedo demais. Mais tarde o futebol interminável, as visitas à casa de parentes nada amistosos. 

Assim eram-lhe roubados os domingos, as horas imprescindíveis de sobrevivência ao mundo caótico que lhe cercava. Agora, eram-lhe tomados pelo passado, pela culpa, pelo arrependimento. 

Os domingos quase raros eram frios, vazios, solitários, de ruas desertas, de janelas prestes a serem acendidas. Ao longo dos anos não tivera domingos e a amargura não era depositada na privada, nem despejada no esgoto que passava perto. 

O domingo dormia nela, ardia entre suas pernas, seus braços esperantes de outros abraços, das risadas nada possíveis nestes domingos de agora. Alguém sempre lhe roubara os domingos, os almoços, as caminhadas, a cumplicidade de quem espera todos os dias por ele. 

E entre um domingo e outro haviam expectativas, mordidas na fronha que esperavam outra e outra noite até que o sétimo dia chegasse, meio trôpego, despedaçado, inalcançável pela mulher que havia sempre sido roubada e nunca reclamou.

Hoje ela saiu de casa determinada.

Faria deste seu último domingo.


CONTAR A SUA HISTÓRIA, COMO SE FOSSE A MINHA HISTÓRIA

CONVITE
Há muito tempo que trabalho com história de mulheres, ao longo dos meus anos do exercício da advocacia e das relações interpessoais desenvolvidas em minhas andanças pelo mundo. Muitas delas de imensa intensidade, requintes de dor e mágoas. Então pensei que uma forma de aliviar nossas mulheres seria contando suas histórias por aqui, como se fossem minhas. As experiências compartilhadas podem auxiliar outras mulheres a entenderem suas histórias. Os comentários podem nos ajudar a superar determinados momentos de fragilidade. Para isso tenho o compromisso ético de manter em anonimato a autora, quem viveu os detalhes confidenciados.
Sua colaboração pode ser remetida para meu e-mail advogadarosanemartins@gmail.com.
Seja bem vinda.
Minha vida é sua vida.